Verão em Lisboa: há casas à noite com 7,6 graus a mais do que na rua

Investigação feita em bairro de Lisboa revela que parte da população idosa não tenta diminuir activamente a exposição ao calor dentro de casa.

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À noite, as ruas tendem a ficar mais frescas do que o interior das casas,À noite, as ruas tendem a ficar mais frescas do que o interior das casas Rike/GettyImages,Rike/GettyImages
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Durante o Verão de 2022, algumas casas de um bairro de Carnide foram alvo de um estudo para se medir as temperaturas interiores e perceber o impacto do calor na população mais idosa. Agora, os resultados provisórios mostram que em períodos de maior intensidade de calor as temperaturas médias nocturnas dentro de casa foram de 7,6 graus acima da temperatura na rua.

Esta variação “poderá eventualmente colocar em causa o período de repouso necessário para a recuperação da sobrecarga térmica diurna”, de acordo com uma síntese provisória dos resultados do trabalho liderado por João Vasconcelos, geógrafo e investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa.

Em Portugal e na Europa, o Verão de 2022 ficou conhecido como sendo o mais quente desde que há registo, com importantes ondas de calor. Entre 4 de Julho e 7 de Agosto, morreram no país “2401 pessoas (25% em excesso ao esperado), coincidente com períodos de calor extremo”, de acordo com um comunicado sobre um estudo publicado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorges (Insa) no final de Março último.

O Insa identifica aquele como sendo um dos quatro períodos de mortalidade excessiva ao longo de 2022. Desde o início deste século, com a onda de calor de 2003, que matou entre 25.000 e 70.000 pessoas em excesso na Europa, os estudos têm mostrado o impacto que estes fenómenos extremos têm na população à medida que o efeito das alterações climáticas se torna mais preocupante.

Vulnerabilidade individual

“Estes estudos têm trazido para o debate as implicações sociais das vulnerabilidades de uma população em envelhecimento e a falta de ferramentas e/ou competências individuais necessárias para a adaptação térmica no interior das suas habitações”, de acordo com a síntese do estudo, revelado em primeira mão nesta quinta-feira pelo jornal Expresso. Os resultados finais vão ser apresentados na próxima quarta-feira, no IGOT, num evento onde vários investigadores vão falar sobre clima urbano e stress térmico, que será público e de entrada livre.

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Nuno Oliveira/Arquivo

O projecto que deu origem a estes resultados chama-se In-Hale e nasce da necessidade de se tentar compreender a adaptação ao calor que as pessoas fazem a nível individual, principalmente em populações mais vulneráveis, como os idosos. “É um estudo pequeno”, reconhece ao PÚBLICO João Vasconcelos. “Estamos a trabalhar num projecto exploratório.” Ou seja, serve para lançar pistas e questões para se continuar a investigar.

A equipa escolheu 20 apartamentos no bairro da Quinta da Luz, em Carnide, que tem um conjunto de blocos habitacionais construídos na década de 1970. A idade das pessoas que viviam naqueles apartamentos ia dos 41 aos 84 anos, sendo a média de 67 anos. Os investigadores colocaram um termómetro que registou a temperatura dentro de uma das divisões de cada apartamento e outro na rua, e foram medindo as temperaturas ao longo dos dias de Agosto e Setembro de 2022.

Abrir janelas e fechar cortinas

 Dos residentes nos 20 apartamentos do bairro escolhido para o estudo 33% dos participantes não usaram nenhuma medida de protecção térmica. Dos que fizeram algo para diminuir o calor, a maioria usou métodos de “protecção passiva”, como o fecho de cortinas e persianas, e a abertura de janelas. “Somente 14% usou ventoinhas e 10% o ar condicionado.”

“Do que se estudou no passado, há um atraso da temperatura interna nas casas em relação à temperatura externa”, contextualiza ao PÚBLICO Ana Oliveira, arquitecta de formação e investigadora que integra o projecto In-Hale e trabalha no CoLab+ Atlantic, em Lisboa. Em geral, dentro das casas, de dia, as temperaturas não atingem valores tão altos como as exteriores, explica a investigadora. À noite, pelo contrário, as temperaturas interiores não descem a valores tão baixos como no exterior (a não ser que o ar condicionado esteja a funcionar). Ou seja, “a amplitude térmica ao longo do dia dentro das casas é menor do que na rua”, resume Ana Oliveira.

Em Carnide, para o caso das temperaturas nocturnas, a regra aplicou-se no estudo feito. A diferença média das temperaturas à noite dentro de casa foi de 5,6 graus. Mas em períodos de maior calor o valor médio subiu mais dois graus. Ou seja, em períodos do Verão, em que as temperaturas foram mais altas e o alívio nocturno do calor seria ainda mais importante, as temperaturas que aqueles moradores viveram em casa à noite foram ainda mais elevadas.

O calor é uma inevitabilidade?

Além da medição das temperaturas, a equipa fez um questionário semanal por telefone aos participantes sobre vários aspectos ligados ao bem-estar e à saúde mental. Os resultados mostraram os efeitos que o calor teve no grupo. “A probabilidade de as pessoas terem uma ou mais dificuldades no seu dia-a-dia, em actividades como cozinhar ou estar ao computador, foi quatro vezes maior” com o calor, diz João Vasconcelos. Da mesma forma, o calor parece ter estado associado a uma pioria na qualidade do sono.

Outra questão colocada aos participantes foi como se protegeram do calor. A resposta de uma parte da população idosa surpreendeu João Vasconcelos: “A maior parte das pessoas refere o calor como uma inevitabilidade que decorre de um processo natural.”

Isso traduz-se nas acções tomadas: 33% dos participantes não usaram nenhuma medida de protecção térmica. Dos que fizeram algo para diminuir o calor, a maioria usou métodos de “protecção passiva”, como o fecho de cortinas e persianas e a abertura de janelas. “Somente 14% usaram ventoinhas e 10% o ar condicionado”, lê-se na síntese do trabalho.

Depois do período experimental, a equipa fez várias entrevistas a idosos do bairro, independentemente de terem participado na experiência ou não. As respostas reforçaram o que os investigadores ouviram no questionário semanal feito por telefone. “Os alertas de calor não são tidos em consideração [pela população idosa]. Não há uma atitude preventiva de adaptação ao calor”, diz João Vasconcelos.

Faria diferença a adopção de práticas de protecção contra o calor, mesmo as passivas? “Penso que sim, que melhoraria muito. Qualquer coisa que arrefeça um pouquinho é um ganho”, responde. Os hábitos da população estudada “conferem um maior risco de exposição ao calor”.

O investigador sublinha que este é um estudo exploratório que não pode ser extrapolado para outro edificado, para outros bairros de Lisboa ou de outras cidades, nem para outras populações idosas. No entanto, os resultados que obteve exigem uma reflexão, defende. “Será que as medidas de alerta são suficientes face a esta posição de inevitabilidade perante o calor?”, questiona. “O objectivo do nosso projecto é discutir estas questões”, afirma. “É preciso sensibilizar as pessoas para que percebam que o calor é um risco para a saúde.”

Na próxima quarta-feira, a apresentação pública dos resultados vai permitir continuar esta discussão e reflectir sobre as próximas etapas da investigação. “Compreender melhor estas narrativas do calor é algo que me interessa”, refere o geógrafo. “Acho que é uma área com défice de informação.”